terça-feira, 17 de novembro de 2009

ESTUDOS DE DIREITO: SENTENÇA AUTORIZANDO A INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ DE FETO ANENCÉFALO

ESTUDOS DE DIREITO: SENTENÇA AUTORIZANDO A INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ DE FETO ANENCÉFALO

SENTENÇA AUTORIZANDO A INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ DE FETO ANENCÉFALO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SERGIPE
COMARCA DE ARACAJU
TERCEIRA VARA CRIMINAL


Proc. 200920300240 – Autorização para aborto de anencéfalo



ALVARÁ DE AUTORIZAÇÃO – INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ – FETO ANENCÉFALO. CONCESSÃO. COMPROVADA A MALFORMAÇÃO E A IMPOSSIBILIDADE DE SOBREVIVÊNCIA EM CASO DE NASCIMENTO. GRAVIDEZ DE RISCO. Uma vez demonstrada a malformação do feto acometido de anencefalia e do risco de vida da gestante e da impossibilidade de vida do feto conforme estudos científicos já comprovados à exaustão, concede-se alvará de autorização para a interrupção da gravidez através de procedimento médico-cirúrgico.



A. C. O. S., devidamente qualificada às fls. 02 dos autos, por meio de seu advogado, ajuizou o presente pedido de AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ POR FETO ANENCÉFALO, alegando, em suma, que:

“A Requerente, após seu 1º parto ocorrido em junho de 1996, passou a sofrer de “pressão arterial alta”. Ainda assim chegou anos depois a engravidar de “gêmeos” e, por conta de problemas da própria gravidez que se tornou de risco, teve o infortúnio de sofrer a interrupção natural da gestação, tendo que amargar a perda precoce dos fetos, ante a má formação.
Agora, mais uma vez, a Requerente tornou-se gestante e se acha no quinto mês de gravidez. Ocorre que, em razão de processo natural de acompanhamento e, ao realizar os exames de ULTRASSONOGRAFIA OBSTRÉTICA às 20 semanas e 02 dias da sua gravidez, ficou constatada a má formação congênita do feto, sendo ele (feto) portador de ANENCEFALIA, ou seja, malformação fetal, caracterizada pela ausência de cérebro e da abóboda craniana, associada a uma desaparição, mais ou menos completa, da medula espinhal, estando assim atestado: “visualizo um feto de +/- 20 semanas, apresentando mal formação do sistema nervoso, com AUSÊNCIA DA CALOTA CRANIANA E EXPOSIÇÃO DA MASSA ENCEFÁLICA – FETO ANENCÉFALO”, consoante comprovada cabalmente pela médica que lhe assiste, Drª Daniela Mattos Góes, e demonstrado pela Ultrassonografias que instruem o presente pleito.”

Argumenta, ainda, que, segundo a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia – FEBRASGO, a anencefalia é uma “mal formação congênita caracterizada pela ausência total ou parcial do encéfalo e da calota craniana proveniente defeito de fechamento do tubo neural durante a formação embrionária”.
Colaciona a Requerente alguns arrestos onde são autorizadas a interrupção da gravidez em casos de idêntica natureza.
Instrumentaliza o pedido com os documentos necessários e juntados às fls. 08/23 e os de fls. 26/27.
Com vistas, o Representante do Ministério Público, em alentado parecer de fls. 28/39, analisa com profundidade as provas e as razões científicas e jurídicas, especialmente a doutrina brasileira e a jurisprudência dos nossos tribunais, para se manifestar favorável ao pedido formulado pela Requerente.

RAZÕES DA DECISÃO

O direito à vida consagrado em nossa Constituição Federal em seu artigo 5º, caput, é a regra fundamental a ser observada em conjunto com os demais valores e direitos ali expressos. Entre eles, o da dignidade da pessoa humana. Nesse passo, à luz dos fatos que sou obrigado a cotejar e aos manifestos científicos sobre o assunto da anencefalia e suas conseqüências, tenho que o alcance da expressão “dignidade da pessoa humana” tem por significado uma vida capaz de se tornar efetivamente dotada de dignidade como condição maior de sua plenitude.
Ao imaginar que um feto anencéfalo em nenhum momento, ainda que venha a nascer não terá condição de sobreviver por lhe faltar condição essencial para uma existência no plano biológico e muito menos no sentido da dignidade social, penso no sofrimento que esta mãe teria ao enfrentar durante nove meses até chegar o dia do parto (se chegar, diante do alto risco de morte intra-uterina conforme o relatório médico de fls. 26) e se deparar com o vazio de um filho que não vai existir.
A doutrina brasileira vem construindo base sólida de argumentos que justificam a interrupção da gravidez em casos dessa natureza, e não é diferente a posição das decisões judiciais sejam monocráticas ou colegiadas, como se pode verificar nos julgados já colacionados nos autos.
A medida é urgente e merece uma atenção especial para evitar o maior sofrimento desta mãe que, em caso contrário, terá que endurecer o coração diante da inevitável morte do esperado filho, como nos lembra bem o Ministro Carlos Ayres Britto em seu voto de vista sobre a admissibilidade da ADPF sobre o tema que tramita no Supremo Tribunal Federal acompanhando o voto do Ministro Marco Aurélio de Mello, quando diz:
“Em suma, no que interessa aos fundamentos da analogia in mellius aqui exposta, a anencefalia é coisa da natureza. Embora como um desvio ou mais precisamente um desvario, não há como recusar à natureza esse episódico destrambelhar. Mas é cultural que se lhe atalhe aqueles efeitos mais virulentamente agressivos de valores jurídicos que tenham a compostura de proto-princípios, como é o caso da dignidade da pessoa humana. De cujos conteúdos fazem parte a autonomia de vontade e a saúde psico-físico-moral da gestante. Sobretudo a autonomia de vontade ou liberdade para aceitar, ou deixar de fazê-lo, o martírio de levar às últimas conseqüências uma tipologia de gravidez que outra serventia não terá senão a de jungir a gestante ao mais doloroso dos estágios: o estágio de endurecer o coração para a certeza de ver o seu bebê involucrado numa mortalha. Experiência quiçá mais dolorosa do que a prefigurada pelo compositor Chico Buarque de Hollanda (“A saudade é o revés de um parto. É arrumar o quarto do filho que já morreu”), pois o fruto de um parto anencéfalo não tem sequer um quarto previamente montado para si. Nem quarto nem berço nem enxoval nem brinquedos, nada desses amorosos apetrechos que tão bem documentam a ventura da chegada de mais um ser humano a este mundo de Deus.”

O juiz não pode deixar de decidir alegando a inexistência de lei, cabe a ele ajustar o fato concreto aos princípios gerais do direito, em especial aos princípios constitucionais, aplicando quando possível a analogia, a equidade.
Neste caso, impende analisar se é possível equiparar a situação concreta à permissão do aborto em caso de estupro como previsto no art. 128, II, do CP, afastando assim a conduta tipificada no art. 124, do CP.
A rigor, a doutrina e a jurisprudência dominante entende que neste caso de feto anencéfalo estamos diante de uma impossibilidade de vida faltando assim elemento essencial ao tipo previsto no art. 124, do CP, qual seja, a possibilidade da vida como bem tutelado penalmente e no sentido também protegido constitucionalmente. Neste sentido, a interrupção da gravidez nessas condições se constitui em fato atípico.
Assim, também entendo como possível a interrupção por estarmos diante de um fato atípico.
Isto posto, julgo procedente o pedido para AUTORIZAR a interrupção da gravidez da Requerente determinando a expedição de Alvará autorizativo aos médicos que a acompanham, devendo ser expedido imediatamente diante da urgência que o caso requer.
Custas de lei.

P.R.I. Cumpra-se.

Aracaju, 13 de novembro de 2009


Juiz JOSÉ ANSELMO DE OLIVEIRA