quarta-feira, 23 de abril de 2008

TODOS QUEREM SEMPRE UMA TRAGÉDIA

Um dos traços da civilização tem sido a tragédia, como se pode perceber nos registros gregos com Antígona e Electra, além das histórias mitológicas carregadas de tragédias como a de Prometeu e do Minotauro.

A tradição judaico-cristã não é diferente do politeísmo greco-romano, assim a própria desobediência de Adão e Eva que resulta no castigo de viver em sofrimento e do suor do rosto; a inveja de Caim que assassina o irmão Abel, filhos de Adão e Eva; sem contar a tragédia que acompanha toda a vida de Jó, e no auge da tragédia a crucificação do filho de Deus, Jesus Cristo.

O filósofo Nietzsche já havia mergulhado na dimensão da tragédia a partir da mitologia grega, ele que tinha uma formação cristã radical percebeu essa dimensão atávica do homem com a tragédia.

O caso da menina Isabella confirma o que a filosofia e a arte já tinham percebido: a sociedade ama a tragédia, talvez porque nela se coloque sem culpa todos os piores sentimentos humanos. Assim, o ódio, a vingança, o sadismo, o masoquismo, a violência pura e simples, podem ser exteriorizados sem qualquer sentimento de auto-reprovação ou de reprovação coletiva.

Propositadamente, não tratarei do fato à luz do direito penal.

O que me chamou a atenção neste caso foi, afora a brutalidade e repugnância diante da covardia, a maneira como a mídia tratou a notícia e do modo como contribuiu para que uma tragédia particular se tornasse uma tragédia coletiva. O modo como a imprensa despertou nas pessoas, as mais anônimas, as mais distantes dos fatos, um sentimento de morbidez e de desejo de vingança e de justiça pelas próprias mãos.

Penso que o papel da imprensa, neste caso em particular, contribuiu para o aprofundamento de uma outra crise da nossa sociedade atual: uma sociedade que vive diariamente suas tragédias e as tragédias dos outros transformadas em tragédias coletivas.

Uma tragédia nova substituindo a tragédia que já esgotou a capacidade de audiência das emissoras de televisão e de rádio, e esgotou o potencial de vendas dos jornais e revistas.

Precisamos diariamente de tragédias como a do garoto João Daniel e a da pequena Isabella para manter saciada a sede do mórbido da nossa sociedade.

Fatos dessa natureza deviam servir também para questionar o papel da família hoje, o problema da saúde mental (os transtornos mentais que vêm aumentando o número de portadores silenciosamente), o papel da religião como suporte do equilíbrio (ou mesmo do desequilíbrio quando o radicalismo passa a ser o fim).

Enfim, além da necessária apuração e da punição justa para os culpados, poderíamos desejar que as pessoas refletissem sobre os valores que estão em crise e que possam reconstruir afetos perdidos para que novas tragédias não dominem a mídia com seu espetáculo.