sábado, 8 de março de 2008

A PRISÃO CAUTELAR COMO EXCEÇÃO AO PRINCÍPIO DO ESTADO DA INOCÊNCIA

José Anselmo de Oliveira
Juiz de Direito da Entrância Especial do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe
Presidente da Turma Recursal dos Juizados Cíveis de Aracaju/SE (2008-2010)
Coordenador e Professor do Curso de Direito da Faculdade de Sergipe - FaSe
Professor da Escola Superior da Magistratura de Sergipe
Mestre em Direito Constitucional pela UFC
Membro fundador do Instituto Brasileiro de Política e Direito Bancário e Financeiro.
Membro fundador da Associação Brasileira dos Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais –ABMPE
Diretor da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais





SUMÁRIO: I- Introdução. II- O Princípio do Estado de Inocência. III- Da Prisão; 1. Antecedentes históricos; 2. Conceito; 3. Prisão cautelar; 4. Prisão decorrente do flagrante; 5. Prisão Preventiva; 6. Prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal; 7. Prisão decorrente da pronúncia. 8. Crime hediondo e prisão cautelar; 9. Prisão temporária. IV- Conclusão. V- Referências Bibliográficas.







I. INTRODUÇÃO


A crise da segurança pública no Brasil é uma realidade que está no limite da tolerância e até mesmo da racionalidade.

A mídia não fala de outra coisa a não ser da onda de violência que assusta todos os cidadãos independentemente do seu poder aquisitivo, e complementa sua dose diária de informações com notícias das rebeliões nos presídios e das impunidades escolhidas para o debate do dia.

O cidadão comum treme diante do caos que se apresenta nas manchetes dos jornais, nas cenas dos telejornais e nas cenas reais da sua rua, do seu bairro, da sua cidade, do seu estado, da sua região.


O conservadorismo atávico da nossa sociedade se manifesta mais uma vez diante da oportunidade única de se espalhar o discurso da lei e da ordem, do embrutecimento do tratamento do problema, da solução por via da força e da ortodoxia policial brasileira que nesses momentos, diante da incapacidade de pensar, prefere o uso indiscriminado da violência estatal que é apenas o uso abusivo do poder, ou de outro modo, a quebra das conquistas do Estado Democrático de Direito.

O aparelho policial do Estado, desaparelhado e com suas estruturas carcomidas pelo salitre da desídia e da corrupção, parece uma baleia encalhada na praia a exigir de voluntários vibrantes a força necessária para escapar da morte certa e outra vez cruzar imponente todos os oceanos.

O Estado-Juiz, que depende nesta área da polícia judiciária, inerte por força de sua natureza jurisdicional, passivamente aguarda que o Ministério Público venha nos salvar de inquéritos policiais dantescos quais os velhos navios negreiros de que falava o bardo Castro Alves, e traga luz e provas concretas para que se mude o destino da grande maioria dos processos criminais – a absolvição por falta de provas.

Na perplexidade em que nos encontramos nos lançamos como caçadores de hereges como na Santa Inquisição, em nome de Deus todo o expediente se torna legal, sua licitude não depende das normas jurídicas, mas antes, do fim último, da reação salvífica dos cruzados contemporâneos, os fins a justificar os meios.

É aqui onde, sobremodo entre os meios, a prisão cautelar de qualquer espécie passa a ser o capaz de tudo, inclusive de resolver o que da forma natural não se resolve (pelo menos na ótica dos que não enxergam meios mais inteligentes).

O tratamento dado à prisão cautelar como meio, instrumento a demonstrar a força e o poder do Estado sobre qualquer do povo, invariavelmente se completa com a prática medieval da tortura para se descobrir os feiticeiros e os seus pecados, a velha palmatória ainda é o confessor mais tradicional nas Delegacias, ao lado de práticas sadomasoquistas de fazer inveja ao Marquês de Sade, choques elétricos, afogamentos, ameaça de fuzilamento, queimaduras com pontas de cigarros, e um sem número de outras práticas já identificadas.

A falta de uma polícia científica treinada e aparelhada para não deixar dúvidas quanto à materialidade dos delitos e nem quanto à autoria é a causa de se enfatizar como meio investigatório a prisão cautelar.

É preciso deixar claro que o tema desse despretensioso e rápido trabalho não é analisar a violência e a impunidade ou suas causas, até por ensejar um aprofundamento teórico e pragmático, mas fincar os olhos no problema da prisão cautelar como instituto jurídico processual penal.

A clareza da compreensão de qualquer problema é a razão do sucesso da empreitada, assim, o que se propõe a analisar é a seguinte questão: A prisão cautelar é uma exceção ao princípio do estado da inocência?

Antes de se oferecer qualquer das respostas possíveis: negando ou afirmando, é necessário discutir sobre o que é o princípio do estado da inocência, onde se localiza no plano normativo-dogmático, qual o seu status enquanto norma jurídica.

Depois, é preciso aclarar conceitualmente o que vem a ser a prisão cautelar, sua localização no mundo da racionalidade normativa, sua subordinação (se existir) a princípios ou preceitos, seus requisitos, sua aplicação na dogmática, e a crítica que se fizer urgente.

Ainda assim, metodologicamente, não concluiríamos a contento a missão, falta vislumbrar se da natureza descoberta ou reencontrada da prisão cautelar podemos responder ao problema proposto de maneira fundamentada.
II. O PRINCÍPIO DO ESTADO DA INOCÊNCIA

A Constituição da República do Brasil promulgada em 05 de outubro de 1988 traz em seu Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, entre outros, os direitos e deveres individuais e coletivos, dispostos em seu art. 5.º, incisos I a LXXVII, e os §§ 1º e 2º, e justamente aqui, mais exatamente no inciso LVII onde se lê: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, que repousa como direito-garantia fundamental o Princípio do Estado da Inocência, apresentado na maioria das vezes como “presunção de inocência” como se a regra fosse desde logo a certeza de culpado ou o Estado da Culpa.

Não se trata aqui de purismo teórico ou formalismo dogmático. A ordem constitucional ao privilegiar o Estado da Inocência busca proteger um dos bens tutelados mais caros: a liberdade, em especial a física, que é alcançada pela tutela penal como necessidade justificada pela sentença penal condenatória.

Essa liberdade tão cara quanto à própria vida, pois não faz qualquer sentido uma vida sem liberdade, é constantemente ameaçada, em especial pelo próprio Estado por força do discurso jurídico-penal positivista-periculosista[1] que escolhe a clientela do sistema penal entre aqueles que antes de qualquer coisa já excluídos do meio social em que vivem são vigiados e a qualquer momento devem ser afastados do meio, inclusive pela utilização da prisão cautelar.

Qualquer pesquisa séria demonstrará ser a maioria, dos que se encontram presos cautelarmente, acusados por delitos que a pena privativa de liberdade aplicada concretamente levaria a sua substituição pelas penas alternativas do art. 44, do Código Penal, com sua nova redação, ou seu regime inicial seria o aberto ou, no máximo, semi-aberto.

Revelando, de pronto, que algo está em desequilíbrio na chamada aplicação do princípio constitucional do Estado da Inocência, diante da ausência de sentença penal condenatória transitado em julgado, e sem a necessidade que excepciona a regra, ou seja, a necessidade da prisão cautelar.

Por isso mesmo é que Weber Martins Batista, citado por Fátima Aparecida de Souza Borges, afirmou:

“(...) o estado natural de quem não foi condenado e, em razão disso, não pode ser considerado culpado é em liberdade desvinculada. As normas que, de qualquer modo, impõem restrições a esta liberdade são normas excepcionais e, com esse caráter, devem ser interpretadas”[2].

A posição de Weber Batista parece ser a mais consentânea com a natureza do direito-garantia que tem status superior às regras do ordenamento processual penal por ser este infraconstitucional.

A prisão é que é provisória, cautela, até que uma sentença definitiva, esgotadas todas as vias recursais disponíveis salvo a revisão criminal, ponha fim ao status libertatis do acusado, e isto se não for possível a aplicação de penas alternativas.

O estado de inocência é alcançado pela presunção da culpabilidade quando se verifica a necessidade e presentes os requisitos da cautela e se decreta a prisão preventiva ou se homologa o flagrante delito.




III. DA PRISÃO

1. Antecedentes históricos

A prisão para aguardar a pena antecedeu a própria pena de prisão. Existia na Grécia antiga e em Roma, e era quase sempre aplicada contra escravos e estrangeiros, aos cidadãos havia a instituição da fiança como assinala João Mendes[3].

A Igreja católica instituiu um poder punitivo e através dele buscava atingir crimes que eram considerados também pecados, a exemplo do infanticídio, aborto, homossexualismo, rapto, adultério, blasfêmia, sacrilégio, heresia, bruxaria, feitiçaria e outros. Para manter presos os que seriam supliciados ou queimados na fogueira, a Igreja mandou construir os penitenciários, prisões com esta finalidade[4].

A partir do século XIII com a criação do Santo Ofício da Inquisição a prisão cautelar passou a ser mais utilizada ainda, pois nesse período, a “rainha das provas” – a confissão, era a causa da necessidade do encarceramento para que através de torturas se obtivesse a confissão.

Ao lado da prática da Igreja, o poder secular também construía suas prisões e com a finalidade do acusado aguardar preso o seu castigo.

A prisão como pena somente vai ser instituída por volta do século XVI, na Holanda, mas precisamente em 1595, com a construção da primeira penitenciária masculina em Amsterdam para cumprimento de pena privativa de liberdade.

No Brasil colônia, a pena de prisão é secundária, sendo a prisão cautelar bastante utilizada para que o criminoso aguardasse a decisão judicial.

Com a independência do Brasil e a primeira Constituição de 1824 é instituída a pena de prisão, seguindo uma tendência mundial. Os presos quase sempre escravos, únicos sujeitos à pena de morte, e as prisões se localizavam nas Casas de Câmara e Cadeia, onde funcionavam as Câmaras Municipais, e nesta época já havia o problema da superlotação.

A legislação processual penal na década de 40, no século XX, é que traz a prisão cautelar com suas modalidades, como a derivada de Flagrante Delito, a prisão em flagrante, a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível , e mais recentemente, a prisão temporária.


2. Conceito

A prisão como exceção ao direito da liberdade física manifestada pela privação da liberdade decorre somente nos limites da legalidade e pode ocorrer segundo a própria Constituição da República somente com o devido processo legal – inciso LIV do art. 5.º , a proibição de ser levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança – inciso LXVI do art 5.º, ou em razão da aplicação da pena privativa de liberdade – inciso XLVI, letra a , do art. 5.º, isso, sem nenhuma dúvida, após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória transitada em julgado conforme o inciso LVII, também do art. 5.º.
À luz da nossa constituição vigente a prisão se apresenta com duas modalidades, a provisória ou cautelar, antes da apenação, e a outra como pena.


3. Prisão cautelar

A prisão antes da condenação transitada em julgado seria a prisão processual também prevista na ordem constitucional exatamente no inciso LXI do art. 5.º, onde esta somente é permitida em caso de flagrante delito ou por ordem escrita de autoridade judiciária competente.

A natureza desta prisão sem formação de culpa, sem veredicto, sem sentença transitada em julgado, é em razão de uma cautela justificada nos limites da lei que exige requisitos específicos e objetivos, logo exsurge a sua face cautelar que não se confunde com as prisões ilegais feitas pela polícia a título de averiguações, prática comum ainda em nosso país, nos mais das vezes configurando-se verdadeiro “seqüestro” e “cárcere privado”, além do manifesto “abuso de autoridade”, quando não é acompanhado da “tortura”.

4. Prisão decorrente do flagrante

A cautelaridade da prisão processual não autoriza que se descuide da exigência do devido processo legal, mesmo quando esta prisão tenha sido em flagrante delito, cabendo à própria autoridade policial quando da lavratura do termo observar o disposto na legislação específica, por exemplo, se a conduta do conduzido se subsume aos tipos penais albergados na definição de crimes de menor potencial ofensivo que pela dicção da lei n. 9.099/95 em seu art. 61, revogado em nosso entendimento, pelo que disposto na lei n. 10.259/01, tem seu conceito legal como todos os crimes cuja pena máxima cominada não seja superior a dois anos de privação da liberdade, independentemente do procedimento previsto, casos em que não lavrará o flagrante e formalizará o “Termo Circunstanciado” que encaminhará ao Juizado Especial Criminal competente, libertando de imediato o autor do fato.

A autoridade policial responsável pela lavratura do flagrante também verificará obrigatoriamente se é caso de fiança arbitrada por aquela autoridade nos termos do art. 322, do Código de Processo Penal, ou seja nos casos de infração punida com detenção ou prisão simples, atendendo as demais condições, inclusive se presentes os motivos que ensejariam a decretação da prisão preventiva, caso em que a autoridade policial representará neste sentido perante o juiz criminal competente.

5. Prisão Preventiva

A prisão cautelar por força do decreto de prisão preventiva, exigirá sempre, que emane de juiz competente que ordene por escrito e fundamentadamente, que não poderia ser diferente mesmo que o inciso tratasse, diante da regra do art. 93, IX, da CR, que obriga todas as decisões judiciais serem fundamentadas sob pena de nulidade, bem como também se verifica que a exigência do juiz competente decorre do princípio do juiz natural encravado na Magna Carta brasileira no art. 5.º, inciso XXXVII, ao proibir o juízo ou tribunal de exceção, portanto, o juiz competente é aquele determinado previamente pela ordem constitucional ao definir as competências dos seus órgãos e pelas leis infraconstitucionais que definem as competências dos juizes.

Assim, uma questão que surge com relevância é a da nulidade da ordem de prisão, mesmo escrita e fundamentada, por juiz que não seja o competente para conhecer e julgar o caso. Ora, se os atos processuais todos, inclusive a sentença é nula quando a questão for de competência do juízo, quanto mais quando se tratar da decretação de prisão cautelar quer pela sua excepcionalidade quer por sua limitação constitucional frente ao direito de liberdade. Entretanto, há a possibilidade de ser novamente decretada a prisão pelo juiz competente quando presentes os requisitos.

Enfrentemos agora os requisitos da prisão preventiva que somente pode ser decretada por juiz competente em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, ou do querelante, ou mediante representação da autoridade policial, se presentes: a prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, e com a finalidade de garantir a ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, como se vislumbra nos arts. 311 e 312, do Código de Processo Penal.

Antes de qualquer coisa, deverá o juiz averiguar se existe a prova da existência do crime, pois é muito comum em representações e pedidos de prisão preventiva a indeterminação quanto a este requisito essencial, não basta o Ministério Público ou a autoridade policial intuir a probabilidade de existência de crime, deverá instruir, o que é bem diferente, sua representação ou seu pedido, com a prova da existência do crime. Demonstrar, portanto, que determinado fato existiu em razão de conduta certa e circunstanciada e que esta se ampara num dos tipos penais existentes no ordenamento criminal pátrio. Um indício de que pode ter existido um crime não autoriza a decretação da prisão preventiva e nem sequer os demais requisitos devem ser analisados pois resultaria numa operação ilógica.

Havendo, entretanto, a prova do crime, a segunda condição é analisar a existência de indício suficiente de autoria. Mittermaier[5] já atribuía a natureza de prova artificial aos indícios, pois estes são relações entre dois fatos de forma precisa que autorizam que de um deles se chegue ao outro por uma conclusão toda natural. Por isso é necessário que existam pelo menos dois fatos e por meio da lógica se chegue à conclusão. Não é intuição, exercício de lógica menor. Nem tampouco indução a partir da mera suspeita ou da escolha a priori de determinado suspeito. Além de tudo, os indícios têm que ser suficientes, necessitam passar pela investigação de todas as possibilidades, inclusive dos álibis oferecidos pelo suspeito, coisa que não se verifica na prática da polícia judiciária como regra, a não comprovação dos contra-indícios pode se manifestar como indício também a ser analisado pelo juiz. Em suma, indício suficiente é aquele capaz de pelas regras da experiência e do bom senso poder se concluir pela autoria do crime.

Ultrapassada a análise das condições básicas, certeza da existência do crime e de uma quase-certeza da autoria, ainda não se pode decretar a prisão preventiva, é preciso se perquirir sobre a sua necessidade que tem motivações legais. Havendo pelo menos um dos motivos há a possibilidade da decretação da prisão preventiva.

A primeira motivação é a necessidade de garantir a ordem pública, expressão que precisa ser bem compreendida pois se usada de maneira genérica como usualmente é feito pode se descaracterizar.

O que é ordem pública?

Othon Sidou[6] diz que a ordem pública é “o conjunto de condições essenciais a uma vida social conveniente, fundamentada na segurança das pessoas e bens, na saúde e na tranqüilidade públicas”, estando presente na ordem constitucional no art. 136 da constituição em vigor. Não há dúvidas que a prática criminosa é inconveniente à vida social e por essa razão é que a lei penal criminaliza determinadas condutas humanas, mas o que se ressalta aqui é se a prática daquele delito compromete a ordem pública como um todo, caso o acusado permaneça em liberdade. Noutras palavras, se a sua liberdade implicará na prática reiterada de outros fatos, fatos novos, que ameacem a tranqüilidade pública de modo objetivo, concreto, a segurança das pessoas e de bens, ou a saúde pública. Sendo a resposta afirmativa se impõe como necessária a prisão preventiva.
Não podemos, entretanto, imaginar que a pretexto de ameaças sofridas pelo acusado por familiares da vítima ou por quem quer que seja motivar a decretação da sua prisão cautelar. Seria uma total inversão de valores. Ao Estado cabe garantir a integridade física de todos, inclusive de acusados que tenham o direito de responder ao processo em liberdade. Trancafiar o acusado por esse motivo se constitui numa ilegalidade possível de ser reparada por via do habeas corpus.

No art. 312, acrescenta-se a garantia da ordem econômica como fundamento para a prisão preventiva com o advento da lei antitruste, Lei n.º 8.884 de 11-06-1994 em seu art. 86.

Na verdade, permeia essa alteração do art. 312 do CP, com a inclusão da “ordem econômica” ameaçada como circunstância autorizadora da decretação preventiva a descaracterização da sua natureza de cautela e não de pena.

Fernando da Costa Tourinho Filho[7] tem razão quando considera essa circunstância esdrúxula, até mesmo porque a ordem econômica estaria protegida genericamente na garantia da ordem pública.

Essa espécie de proselitismo legalista cai por terra quando a maioria dos crimes econômicos não leva ninguém à prisão. Mais eficiente será com certeza a pena de prestação pecuniária que se coloca como eficaz nesses casos.

Outro motivo é a conveniência da instrução criminal. Esta conveniência está diretamente ligada à produção das provas, em especial à prova testemunhal, que pode ser coagida pelo acusado, ameaçada, ou eliminada. As demais provas, especialmente as científicas e as documentais, nos parecem que estão protegidas pela ação da polícia judiciária quando da sua produção e uma vez no processo sob os cuidados do poder judiciário. O problema é a proteção da testemunha, que apesar da existência da lei n.º 9.807/99, que estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, continua em sua grande maioria ameaçada.

A prisão preventiva teria, em tese, o condão de desestimular essa conduta de acusados, a nosso ver, justo, mas insuficiente para a solução do problema, pois em nosso sistema as vítimas e as testemunhas não estão efetivamente protegidas nem mesmo com o encarceramento dos acusados.

A terceira e última motivação é para garantir a aplicação da lei penal, esta somente se justifica quando o crime em tese e as condições pessoais do acusado levar a conclusão de que será apenado com pena privativa de liberdade que não caiba a substituição por penas alternativas previstas no art. 44, do Código Penal brasileiro, ou, que esteja sujeita pelas condições pessoais do acusado e da sentença a aplicação da suspensão condicional da pena na conformidade do art. 77 e seguintes do Código Penal, ou ainda, que preencha os requisitos para cumprir inicialmente a pena em regime aberto na forma do art. 33, do CP.

6. Prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal

A norma do art. 393, do CPP, diz: “ São efeitos da sentença condenatória recorrível: I- ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança; II- ser o nome do réu lançado no rol dos culpados.”, trazendo assim uma espécie de prisão também cautelar que ainda não se pode confundir a pena propriamente, pois enquanto não transitar em julgado não se pode falar em cumprimento de pena.

O que se indaga é sobre a constitucionalidade do dispositivo? Se foi recepcionado pela ordem constitucional inaugurada em 1988? Se o réu estando solto, apenas tendo por motivo a prolação da sentença condenatória sem o trânsito em julgado, teria que se submeter a esta prisão e se esta está dentro do sistema jurídico nacional.

Não é desnecessário reafirmar que o direito positivado obedece a uma ordem sistêmica que se instala por força da ordem fundante que é a Constituição e se harmoniza com o ordenamento jurídico infraconstitucional para se tornar um todo em equilíbrio .

Não basta uma norma ter a aparência de legalidade com relação à forma e ao modo do seu nascimento. É preciso mais. É preciso que esta norma se compatibilize com o sistema a partir da leitura dos princípios da ordem que funda o Estado e a própria função de produzir as demais normas. Depois, a análise tem que verificar se a norma está harmonizada em seu sistema próprio como parte do ordenamento infraconstitucional penal.

De pronto, a Constituição de 1988 não recepcionou o inciso II do dispositivo em discussão, pois ofende literalmente o Princípio do Estado da Inocência que somente é alcançado pelo instituto da coisa julgada penal. Logo, é inconstitucional a parte da sentença penal que determinar que seja lançado no rol dos culpados o nome do réu antes do trânsito em julgado.

Com relação à prisão como efeito imediato da condenação sem transitar em julgado a jurisprudência predominante é no sentido tanto da recepção do dispositivo infraconstitucional, (art. 393, I, do CPP), e ainda que frente ao Princípio do Estado de Inocência ou “da presunção da inocência” somente é estendido até no máximo os embargos, podendo ser executada provisoriamente a sentença penal condenatória recorrível quando se tratar de recursos extraordinário e especial, contra a revogação do art. 594 do CPP pela Constituição, como se verifica no voto vencedor do Relator Min. Carlos Velloso, no Habeas Corpus n. 72741-7- RS- DJ 20/10/95:
Ementa-penal processual penal – Habeas Corpus – Réu condenado pelo Tribunal do júri – Decisão confirmada pelo tribunal de justiça – Determinação no sentido da expedição de mandado de prisão contra o réu – Presunção de não culpabilidade – CF, art. 5.º, LVII – CPP, art. 594.

I. O direito de recorrer em liberdade refere-se apenas à apelação criminal, não abrangendo os recursos extraordinário e especial, que não têm efeito suspensivo.
II. A presunção de não culpabilidade até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória – CF, art. 5.º, LVII – não revogou o art. 594 do CPP.
III. Precedentes no STF.
IV. HC indeferido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria, indeferir o habeas corpus, vencido o Sr. Ministro Marco Aurélio.

Brasília, 1.º de setembro de 1995.

VOTO
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): A sentença condenatória do Tribunal do Júri foi confirmada pelo TJ/RS. Inconformado, o paciente embargou a decisão de segundo grau. O Tribunal, ao negar provimento aos embargos, determinou a expedição de mandado de prisão contra o paciente.

O paciente insurge-se contra a medida coercitiva, postulando a concessão da ordem para recorrer em liberdade.

Sem razão o inconformismo.

Como observa o parecer o Ministério Público, da lavra do ilustre Subprocurador-Geral Mardem Costa Pinto, o direito de recorrer em liberdade diz respeito tão-somente à apelação criminal, não abrangendo os recursos extraordinário e especial, que não têm efeito suspensivo.

É nesse sentido a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, de que é exemplo, interplures, o HC 71.843-RS, Relator Min. Celso de Mello, ficando o acórdão assim ementado:

“Ementa - Habeas Corpus – Condenação penal sujeita a recurso de índole extraordinária ainda pendente de apreciação – Possibilidade da prisão do condenado – Pedido indeferido.

O princípio constitucional da não culpabilidade dos réus, fundado no art. 5.º, LVII, da Carta Política, não se qualifica como obstáculo jurídico à imediata constrição do status libertatis do condenado.

A existência de recuso especial (STJ) ou de recurso extraordinário (STF), ainda pendentes de apreciação, não assegura ao condenado o direito de aguardar em liberdade o julgamento de qualquer dessas modalidades de impugnação recursal, porque despojadas, ambas, de eficácia suspensiva ( Lei n. 8.038/90, art. 27, § 2.º).

O direito de recorrer em liberdade que pode ser eventualmente reconhecido em sede de apelação criminal – não se estende, contudo, aos recursos de índole extraordinária, posto que não dispõem estes, nos termos da lei, de efeito suspensivo que paralise as conseqüências jurídicas que decorrem do acórdão veiculador da condenação penal. Precedentes.”(DJ 19/05/1995).

No mesmo sentido decidiu esta corte no HC 71.909-SP, Relator Min. Ilmar Galvão. O acórdão recebeu a seguinte ementa:

”Ementa: Habeas corpus – Acórdão que, confirmando a sentença condenatória, determinou a expedição de mandado de prisão.

Decisão que por estar sujeita tão-somente a recurso sem efeito suspensivo (especial ou extraordinário), é suscertível de execução provisória.

Precedentes do STF.
Habeas Corpus indeferido. (DJ de 26-05-1995).”

Por outro lado, a alegada presunção de não culpabilidade prevista no art. 5.º LVII, da Constituição, conforme decidiu esta Turma no HC 69.263-SP, de que fui Relator, não revogou o art. 594 do CPP. O acórdão foi ementado da seguinte maneira:
“Ementa – Constitucional – Processual penal – Prisão –Presunção de não culpabilidade – CF, art. 5., LVII – CPP, art. 594.

I. A presunção de não culpabilidade até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória – CF, art. 5, LVII – não revogou o art. 594.
II. H.C. indeferido. (DJ de 09/10/1992).

Não foi outro o entendimento desta Corte no HC 69.667-RJ, Relator Min. Moreira Alves, DJ de 26/02/1993; HC 67.857-SP, Relator Min. Aldir Passarinho, DJ 12/10/1990 e HC 68.841-SP, Relator Min. Moreira Alves, RTJ 138/216.

VOTO

O Sr. Ministro Maurício Corrêa: Senhor Presidente, em consonância com o entendimento adotado por ambas as Turmas deste Tribunal, até agora iterativa – até porque está-se a aguardar a complementação do julgamento em Plenário de habeas corpus em que novamente é suscitada matéria quanto a não recepção pela Constituição Federal do art. 594 do CPP – o que tem ocorrido é de não se dar efeito suspensivo a recurso interposto em caráter extraordinário.

Absolutamente em harmonia com a jurisprudência da Corte, acompanho o em. Relator, também indeferindo o writ.

VOTO

O Sr. Ministro Marco Aurélio – Senhor Presidente, mantenho o convencimento a respeito da matéria, no que baseado na impossibilidade de se ter a execução do título judicial antes do trânsito em julgado. Reitero o que tive oportunidade de lançar em voto proferido em habeas corpus que continua sob o crivo do Plenário e do qual pediu vista o Ministro Ilmar Galvão.

Senhor Presidente, na hipótese, a expedição de mandado de prisão afigura-se como execução, com foro definitivo, do título judicial, se este ainda não transitou em julgado. É tal passo demasiadamente largo e até hoje ao foi dado sequer no campo civilista, sequer no campo patrimonial. Todos sabemos que, pendente recurso sem efeito suspensivo, a execução é provisória e chega apenas à garantia do juízo. Pergunto: executada essa sentença, não fica assentada a culpabilidade? Podemos ter execução de sentença penal, sem que se tenha tornado extremo de dúvidas, em provimento emanado do Judiciário, a culpa do réu? Não, Senhor Presidente! Admito que o sentenciado possa perder a liberdade, ainda que não tenha ocorrido o trânsito em julgado da sentença. Todavia, é preciso que conste da sentença fundamentação no sentido de que esse recolhimento precoce, antecipado, faz-se no campo acautelador, tenho em vista os interesses da sociedade.

Não posso conceber que, diante da clareza do inciso pertinente à espécie, do rol das garantias constitucionais, diante da enumeração exaustiva, contida na Carta, das hipóteses em que viável a prisão, caminhe-se para esse novo tipo, que é o relativo à execução da sentença, que não transitou em julgado.

Senhor Presidente a Constituição Federal – e peço desculpas aos Colegas por reiterar esse dado – balizou, de maneira exaustiva, as hipóteses em que viável a prisão, não tendo sido incluída a que venha ocorrer na pendência do recurso.

Peço venia aos Colegas, e confesso mesmo que enquanto tiver cadeira nesta Corte insistirei na tese, porque estou convencido, a mais não poder, de que não subsiste a possibilidade de se executar uma sentença condenatória sem que tenha transitado em julgado, para reiterar o voto proferido. Se o Colegiado que confirmou a sentença considerou que seria pernicioso manter o Paciente em liberdade, deveria ter consignado fundamentos que evidenciassem ter sido decretada uma prisão preventiva, acauteladora, como disse, sem essa automaticidade de expedição de mandado pela simples circunstância de se haver corroborado a sentença condenatória e o recurso cabível contra essa confirmação não possuir efeito suspensivo, como todos sabemos que não possui o especial.

Mantenho o meu ponto de vista. Há um conflito entre a decisão atacada e o princípio básico inserto na Carta de 1988, que o princípio da não-culpabilidade. Está no rol das garantias constitucionais que somente fica assentada a culpa se um cidadão após o trânsito em julgado da sentença condenatória contra ele proferida.

Mantenho meu voto, concedendo a ordem nos termos lançados na assentada anterior.

Decisão: A Turma, por maioria, indeferiu o habeas corpus, vencido o Sr. Ministro Marco Aurélio 2.ª Turma, 01/09/1995.

Presidência do Senhor Ministro Néri da Silveira, Presentes à sessão os Senhores Ministros Carlos Velloso, Marco Aurélio e Maurício Corrêa. Ausente justificadamente, o Senhor Ministro Francisco Rezek. Subprocurador-Geral da república, o Dr. Mardem Costa Pinto.”

Por absoluta necessidade transcrevemos os votos na decisão supra. Neles estão os pontos principais da discussão jurisprudencial e também do enfoque teórico da questão.

De um lado, predomina a visão do legalismo infraconstitucional que não representa em nosso entendimento a leitura correta da Constituição da República, não só do princípio do Estado da Inocência ou “não-culpabilidade”, expressão que já substitui a velha “presunção de inocência”, como também da necessidade de fundamentação de todas as decisões conforme o art. 93, IX, CR.

Apesar da predominância do entendimento sobre a matéria em todas as turmas do Supremo Tribunal Federal, a posição adotada pelo Ministro Marco Aurélio ao adotar a supremacia da ordem constitucional como limite, bem como a precisão hermenêutica do princípio do Estado de Inocência em face da coisa julgada em matéria penal, onde não temos dúvidas, impossibilita a execução provisória da sentença penal condenatória recorrível, é mais coerente e atende a aplicação dos princípios constitucionais.

A questão não se estreita na recepção ou não do art. 594 do CPP, cuja dicção é a seguinte: “O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto.” O Superior Tribunal de Justiça através da súmula 9 entende que esta prisão provisória não ofende a garantia constitucional da presunção da inocência, enquanto o Supremo Tribunal Federal na súmula 393, diz que para requerer revisão criminal não precisa recolher-se à prisão.

Nota-se que a matéria não está corretamente apreendida e sucumbe a alguns equívocos. O primeiro está em se reconhecer que a prisão no caso do art. 594 é provisória, logo cautelar, não podendo se impor como obrigação, mas como cautela a ser pronunciada pelo juiz ou tribunal presentes os requisitos. O segundo, porque se tratando de revisão criminal regulada pelos arts. 621 e seguintes, do CPP, pressupõe o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Percebe-se que há uma contradição. No mínimo uma má interpretação da matéria.

Não há dúvida de que a prisão após a sentença condenatória recorrível é possível desde que seja motivada e fundamentada por se tratar de prisão cautelar que, atendendo os interesses da sociedade e para garantir a aplicação da lei penal, poderá ser decretada pelo juiz ou tribunal.

Entretanto, nada justifica a aplicação sem qualquer motivação da prisão obrigatória para apelar do art. 594 do CPP, quando o réu respondeu todo o processo em liberdade, compareceu a todos os atos.

A súmula 393 do STF parece ir, inclusive além, ao desobrigar que o réu condenado com o trânsito em julgado não seja obrigado a se recolher à prisão.

Os recursos especial e extraordinário, respectivamente, perante o STJ e STF, não têm efeito suspensivo, este é um fato. Todavia, é pacífico na doutrina e nos tribunais que em se tratando de dano irreparável ou de difícil reparação pode ser atribuído a estes recursos o efeito suspensivo. Ora, não há nada mais irreparável do que a prisão provisória injustificada, arbitrária.

Há de ser aplicado, sem medo de errar, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. A prisão cautelar na fase recursal deve observar em especial a sua razoabilidade para não fulminar o princípio do Estado de Inocência que somente cessa com a sentença penal condenatória transitada em julgado.

Os argumentos em contrário pecam pela falta de lógica e de cientificidade e apelam para o emocionalismo muitas vezes construído pela mídia, pela incapacidade de resolver em outro campo, o da segurança pública, o aumento da violência e da criminalidade.

Não seria o medo da mídia sôfrega para encontrar culpados pela violência da sociedade atual e do aumento sem precedentes da criminalidade violenta, que contribui para que juizes e tribunais não tenham a coragem de assumir o seu maior dever, o de respeitar a ordem constitucional?

Quem tem medo não pode julgar. A coragem é a principal qualidade do magistrado. É na coragem e através do estudo e da sensatez que a sociedade democrática avança.

Não se pode confundir o grito da turba ensandecida, amplificado pelos comunicadores populistas da mídia eletrônica, com a Justiça material ou como valor.

A liberdade, a honra e a moral, são os únicos bens insuscetíveis de reparação plena, apesar da garantia constitucional da sua reparação. Não há dinheiro no mundo que repare a prisão injusta.

7. Prisão decorrente da pronúncia

Uma outra espécie de prisão cautelar ou provisória aparentemente obrigatória é a prevista no art. 408, § 1.º, do CPP, cuja dicção é a seguinte: “ Na sentença de pronúncia o juiz declarará o dispositivo legal em cuja sanção julgar incurso o réu, recomendá-lo-á na prisão em que se achar, ou expedirá as ordens necessárias para sua captura.” (grifos nossos.)

Evidentemente que não se pode interpretar literalmente o texto legal supra, e muito menos sem a devida e necessária análise à luz da Constituição sob pena de se consumar uma inconstitucionalidade.

Certamente que a parte grifada do dispositivo supramencionado não foi recepcionada pela Constituição de 1988 pois a regra constitucional aplicável à matéria implica na proibição de prisão cautelar obrigatória em cujo critério repousa num ato do juiz, no caso a pronúncia, que não se constitui sentença, mas juízo de admissibilidade da acusação, decisão interlocutória sujeita a recurso em sentido estrito, e onde não se refere às condições pessoais verificáveis no devido processo legal.

Assim, ao juiz cabe avaliar se os motivos que ensejaram a prisão preventiva mantiveram-se quando da pronúncia, e sendo afirmativa a resposta, deve, ao recomenda-lo na prisão em que se acha recolhido, faze-lo fundamentadamente.

Em sentido oposto, estando o réu pronunciado solto, poderá ser decretada a sua prisão preventiva nos estritos motivos a que alude o art. 312, apurados no devido processo legal.

Não faz qualquer sentido, ser o motivo da prisão apenas o fato de haver sido pronunciado.

O STF já decidiu inúmeras vezes em todas as suas turmas que não existe mais no ordenamento brasileiro a prisão preventiva obrigatória[8].



8. Crime hediondo e a prisão cautelar


A Lei n.º 8.072/90, com as alterações das Leis n.º 8930/94 e 9695/98, veio atender a determinação da Constituição de 1988 em seu inciso XLIII, do art. 5.º, definindo quais são os crimes hediondos para que não sejam suscetíveis de graça ou anistia, além de inafiançáveis.

Todavia, o legislador ao editar a norma infraconstitucional foi além e também tornou os crimes hediondos como obstáculos à liberdade provisória, como se verifica em seu art. 2.º:

“ Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:
I - anistia, graça e indulto;
II - fiança e liberdade provisória.
§ 1º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado.
§ 2º Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade. “

Diante do texto da lei, o fato da imputação ao acusado ser de crime hediondo, estaria já autorizado o juiz a decretar a sua prisão preventiva?

Do mesmo modo estaria o juiz proibido de conceder ao acusado a liberdade provisória?

Hediondo, segundo o Aurélio[9] é algo “depravado, vicioso, sórdido, imundo”, ou “ repulsivo, repelente, horrendo”. Qual o crime que não seja hediondo?

A adjetivação apenas de alguns crimes parece tornar os demais como “algo não repulsivo”, o que não é bem verdade. A Constituição quis estabelecer um grau diferenciado de repulsa de determinadas condutas e ao contrário do que fez com a tortura e o terrorismo deixou ao critério do legislador ordinário, daí a Lei n.º 8.072/90.

A Lei é ruim em sua dicção inicial e as alterações não conseguiram salvá-la.

Em particular, não nos parece acertada a inclusão da cláusula que proíbe a liberdade provisória, porque o fato do indiciamento ou da denúncia trazer uma tipificação de um dos delitos arrolados pela lei como hediondo, não possibilita a certeza de que o indiciado ou o denunciado tenha cometido efetivamente um crime hediondo, a certeza somente virá com a sentença condenatória.

Tanto isso é verdadeiro que o legislador no mesmo art. 2.º, § 3.º, expressamente diz que o réu condenado poderá apelar em liberdade exigindo apenas que o juiz fundamentadamente assim decida.

Ora, se mesmo após uma sentença condenatória recorrível o réu poderá apelar em liberdade, qual o motivo de se proibir a liberdade provisória antes da sentença?

O texto nos parece surrealista, contraditório, imperfeito e que leva muitas vezes ao cometimento de injustiças inqualificadas quando aplicada por operadores legalistas.

Oportuna a lição que o Ministro Celso de Mello nos dá no HC- 80719/SP- Segunda Turma, decisão unânime, Acórdão publicado no DJ de 28-09-2001, ao afirmar em sua ementa:

“ DISCURSOS DE CARÁTER AUTORITÁRIO NÃO PODEM JAMAIS SUBJUGAR O PRINCÍPIO DA LIBERDADE.

A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional ( CF, art. 5º, LXI e LXV) – não Poe ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamadas pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem.

Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível – por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) – presumir-lhe a culpabilidade.
Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado.

O princípio constitucional da não-culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário.”

Paula Martins da Costa analisando a desigualdade na privação cautelar diz:
“ A liberdade provisória só não deve ser concedida quando o caso e as circunstâncias do indiciado ou acusado exigirem decreto de prisão cautelar. A prisão preventiva só pode ser decretada quando motivos reais a tornarem imprescindível para a segurança da comunidade. Assim, o segundo fator discriminador da igual liberdade é de ordem material e está fundamentado em especificidades do caso concreto previstas genericamente com anterioridade na lei processual penal. Formula-se, portanto, a segunda conclusão: Todos os homens são igualmente livres, exceto os que, ainda não condenados a privação da liberdade por sentença irrecorrível, derem causa a situação de fato autorizadora do decreto judicial de prisão preventiva, verificada no transcorrer da persecução penal e prevista, com anterioridade, na lei.
A conclusão acima, obtida a partir dos estritos dispositivos constitucionais, não tem como ser relativizada e não comporta exceções. Dir-se-á que a Constituição remete as hipóteses de liberdade provisória à lei, e que a lei pode, portanto, dispor alternativas à prisão preventiva e à liberdade provisória. Mas a lei nunca poderá inverter valores para considerar regra a prisão e exceção a liberdade. A Constituição privilegia a liberdade. Por isso, sempre e necessariamente, no sistema processual, a liberdade provisória será inarredável. Apenas quando cabível decreto de prisão preventiva, poderá esta suprimir a liberdade.”[10]

Necessário chamar a atenção que não se defende aqui a impossibilidade da prisão cautelar, mas a sua decretação apenas quando de absoluta necessidade, satisfeitos os pressupostos do art. 312 do CPP, e de razões justificadas da imprescindibilidade da medida cautelar de privação de liberdade do acusado.

9. Prisão temporária

A prisão temporária foi instituída no Brasil por força de uma Medida Provisória editada sob o n. 111, de 24-11-1989, e depois substituída pela Lei n.º 7.960/89, como mais uma modalidade de prisão cautelar.

Não é uma criação brasileira a prisão temporária, já existindo em outros países a exemplo da Itália, Portugal, Espanha, França, Estados Unidos, e se diferencia da prisão preventiva pelo fato de ter prazo certo, e ainda, por ter uma finalidade específica que é a sua conveniência e necessidade no curso de investigação de crimes graves.

Contrasta com a direção adotada pela legislação processual moderna e significa, pelo menos para nós, uma declaração de incompetência da polícia judiciária, seja por falta dos meios ou de preparo, pois não se exige aqui o rigor da prova da materialidade do delito e indícios suficientes da autoria, bastam “fundadas razões”.

A imprescindibilidade para a investigação como motivo para ser decretada a prisão temporária somente se justificaria num outro tipo de procedimento de inquérito, no atual, quando sabemos que testemunhas depõem como acusados, pressionados e sob coação psicológica, falar de prisão para obrigar testemunhas a comparecerem na delegacia de polícia é, no mínimo, um insulto à inteligência mediana.

Há de se reconhecer que a lei é muito mal redigida e de má técnica legislativa, e permite que qualquer pessoa possa ser presa, inclusive testemunhas do fato.

Qual é a velha prática investigatória? Prender, e mediante o interrogatório policial obter uma confissão, e depois concluir as investigações buscando as provas necessárias para corroborar com a “confissão”.

Antes, a prisão clandestina, a velha prisão para averiguação feita por qualquer agente policial sem qualquer respeito às garantias ou aos direitos fundamentais, herança do tempo do arbítrio.

Ainda hoje, essa prática tem ocorrido, como verdadeiros “seqüestros”, na mais absurda das práticas abusivas policiais, onde são desrespeitadas outras garantias como a inviolabilidade da residência, especialmente as das áreas pobres, favelas e invasões, o direito à privacidade através das escutas e dos grampos sem autorização judicial, só para citar estas.

A prisão temporária se tratada de qualquer maneira poderá vir a se tornar uma prática revestida de legalidade para se ofender os direitos fundamentais.

A prisão temporária é constitucional?

A Constituição da República não admite que alguém seja preso quando ausentes os pressupostos e requisitos para a prisão preventiva. Como alerta Paula Martins da Costa, “ Não há, no sistema processual penal, meio-termo: ou a prisão é medida cautelar indispensável para evitar situação de perigo concreto na comunidade, ou a liberdade permanece. Prisões para averiguação são inviáveis no sistema constitucional brasileiro. Toda prisão pressupõe anterior cognição do caso penal.[11]”.

A Lei 7.960/89, portanto, sem dúvida alguma é inconstitucional. O aparente devido processo legal instituído pela citada lei não se reveste de conteúdo constitucional adequado e suficiente para privar a liberdade de qualquer pessoa. Indispensáveis os pressupostos e requisitos para a prisão preventiva.

IV. CONCLUSÃO


Podemos concluir que não há dúvidas quanto à natureza excepcional e cautelar da prisão provisória em todas as suas modalidades diante do Princípio do Estado de Inocência que preside a regra.

A liberdade física da pessoa humana, como direito fundamental consagrado na ordem constitucional, é o norte que orienta o controle judicial quando da decretação de medida cautelar de prisão.

Tendo em vista a supremacia da ordem constitucional, a interpretação que se deve fazer será sempre no sentido de privilegiar a opção do constituinte pela liberdade.

A fundamentação quando do decreto de qualquer uma das modalidades, inclusive da homologação do flagrante delito, é obrigatória e não pode ser substituída por expressões formais tais como “presentes os requisitos ou pressupostos”, pode e deve ser sucinta, mas tem de objetivar as circunstâncias e ressaltar as razões justificadoras da medida extrema.

A solução para o problema da crescente violência e do aumento da criminalidade não está na segregação provisória como resposta imediata, mas incompleta, à sociedade. Deve-se buscar na excelência da investigação policial e nas provas produzidas no inquérito policial, aliada a celeridade dos feitos criminais, o combate concreto contra a impunidade, a nosso ver causa principal do aumento da criminalidade.



V. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORGES, Fátima Aparecida de Souza. Liberdade provisória. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

COSTA, Paula Bajer Fernández Martins da. Igualdade no direito processual penal brasileiro. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. – (Coleção de estudos de processo penal Prof. Joaquim Canuto Mendes de Almeida ; v. 6)

D´URSO, Luiz Flavio Borges. Vera Regina de Almeida Braga e Júlio César da Silva Fagundes. A prisão cautelar e o devido processo legal. São Paulo: Consulex, 1994.

MIRABETE, Julio Fabrini. Processo penal. São Paulo: 8. ed., Atlas, 1998.

MITTERMAIER, C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal. Traduzido por Herbert Wüntzel Heinrich. 3. ed. Campinas: Bookseller, 1996.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: 16. ed., Malheiros, 1999.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. Vol. 3. São Paulo: 19. ed. Ver. e atual. , Saraiva, 1997.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda da legitimidade do sistema penal. Tradução de Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

[1] Para melhor compreender o discurso jurídico-penal na América Latina é indispensável a leitura de Eugenio Raúl Zaffaroni em seu “Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal”, traduzido por Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição- Rio de Janeiro: ed. Revan, 1991, 4ª ed., 1999.
[2] In, “Liberdade Provisória”- Belo Horizonte: Del Rey, 2001, pág.160.
[3] Apud Luis Flávio D´Urso e outros, in A Prisão Cautelar e o Devido Processo Legal, p. 13.
[4] O que foi registrado por Augusto Accioly Carneiro em sua obra “Os Penitenciários” de 1930, apud Luis Flávio D´Urso, op. Cit.
[5] In Tratado da Prova em Matéria Criminal, Campinas: traduzido por Herbert Wüntzel Heinrich, 3.ª ed. Bookseller,1996, pág. 323.
[6] Dicionário Jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, Rio de Janeiro: 6a. ed., Forense Universitária, 2000.
[7] Em seu Processo Penal, volume 3, p. 479. São Paulo: 19.ª ed. , Saraiva., 1997.
[8] RHC-79200/BA
Recurso de habeas corpus. Relator Ministro Sepúlveda Pertence.
DJ 13.08.1999, p.9
Julgamento 22.06.99 – 1ª T. Ementa: I. Prisão por pronúncia: se a pronúnica nãoinvoca outra razão para manter-se preso o réu que não o fato de já se encontrar ele sob prisão preventiva, à validade originária desta fica subordinada a sua continuidade até o júri. II. Decisão judicial: falta ou inidoneidade de fundamentação que, constituindo nulidade, nãopode ser suprida pela motivação das decisões que, em instâncias diversas, a mantiveram. III. Prisão preventiva: à falta da demonstração em concreto do periculum libertatis do acusado, nem a gravidade abstrata do crime imputado, ainda que qualificado de hediondo, nem a reprovabilidade do fato, nem o conseqüente clamor público constituem motivos idôneos à prisão preventiva: traduzem sim mal disfarçada noltagia da extinta prisão preventiva obrigatória. Votação: Unânime. Provido.
[9] Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999.

[10] Posição de Paula Bajer Fernandes Martins da Costa em sua tese de doutoramento sob o título de “Igualdade no Direito Processual Penal Brasileiro”, defendida em 2000 na USP, publicada pela RT, Coleção de Estudos de Processo Penal Prof. Joaquim Canuto Mendes de Almeida- v. 6, p.79,80.
[11] Idem ibidem, p.80.

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